Autor do arquivo: abcpsigma

Defesa à Psicossomática

Fabio Veronesi

Há, dentro da Psicologia acadêmica, os que dizem não haver sentido em se utilizar o termo psicossomático porque todo fenômeno psíquico é também somático e vice-versa.

Discordo dessa linha de raciocínio. Ela é restritiva e carrega consigo a justificativa para manter a Psicologia Somática do lado de fora da Academia, ou seja: dá a entender que é desnecessária, pois todos os ramos da Psicologia que fundamentam teorias e terapias já são psicossomáticos porque ao trabalharem sobre o universo psíquico estão também trabalhando sobre o Corpo.

Cabe uma analogia:

Os fenômenos psíquicos também estão profundamente associados à cultura. O ser humano não se faz sozinho, quero dizer, não basta nascer humano para ser humano. Não é toa que usamos a palavra “criação” para designar o processo de sustentação e educação dos filhos. Não há Eu que não seja cultural, em relação com outros (mesmo que seja se isolando deles), fruto de uma sociedade, no sentido de ser gerado por ela e ao mesmo tempo ser seu agente reprodutor. Todo fenômeno psíquico é também social e vice-versa. Então, não deveria existir a área de estudo que chamamos de Psicologia Social? Não deveriam existir metodologias terapêuticas chamadas psicossociais, pois toda terapia é psicossocial?

A possibilidade e precisão da existência de áreas do conhecimento chamadas Psicologia Social e Psicologia Corporal ou Somática é tão clara quanto o fato das palavras cultura, mente e corpo significarem coisas distintas e necessárias, mesmo que os fenômenos psicossociais e psicossomáticos estejam interligados a tal ponto que, em certa instância, possam ser entendidos como um único fenômeno da expressão humana.

Resta a pergunta: por que distinguir psique e soma se são expressões de um só Ser?

Porque há possibilidade e necessidade de fazê-lo. Precisamos dessa distinção para nos comunicar melhor, sermos mais específicos, ajudar quem nos ouve a entender melhor as idéias, sentimentos, percepções, reflexões que tentamos explicar, comunicar com palavras.

A troca de idéias e conhecimento entre os humanos se dá através das palavras. Todo conhecimento científico e filosófico acumulado por gerações e gerações de nossos ancestrais nos são acessíveis hoje pelas palavras.

Não há como negar a necessidade das palavras corpo e mente serem distintas muitas e muitas vezes em nossa comunicação cotidiana. Não há como negar a presença dos radicais gregos psic e soma vivos nas nossas línguas contemporâneas, em termos como “psicodélico” ou “cromossoma”. É água brotando ainda hoje da fonte da filosofia e ciência ocidental. Bebemos dessa fonte para desenvolver ciência e metodologia terapêutica – psicologia e psicoterapia.

A simples realidade de existirem as palavras corpo e mente (ou soma e psique) dá ampla possibilidade para existência de um ramo da Ciência chamado Psicologia Somática, distinto de outros, necessário e preciso por suas bases teóricas, práticas terapêuticas e linha de pesquisa.

É exatamente a clara percepção de que corpo e alma são um só, o que dá coerência em associar psique e soma. E para associá-los é preciso distingui-los. Distinguindo é que podemos associar, novamente distinguir, novamente associar, … Análise e síntese – a sístole e diástole da pulsação que impulsiona a Ciência e o conhecimento humano.

Estamos no mundo, mas não estamos em todos os lugares ao mesmo tempo. Estamos em um tempo e lugar único e específico. Com essa distinção é que nos localizamos. Conhecer diferentes locais não significa separá-los. Significa criar caminhos entre eles.

A rigor, a Psicossomática abrange também a área da Medicina conhecida como Medicina Psicossomática. Inaugurada com o médico Heinroth que, em 1918 cunhou os termos doença somatopsíquica ou doença psicossomática.

Interessante notar que a Medicina Psicossomática é uma área completamente distinta da Psiquiatria (a velha representante da Medicina no universo Psi). A Psiquiatria patologiza os fenômenos psíquicos, trata psicose e neurose como doença, distúrbio, síndrome, transtorno e outros nomes patologizantes que justifiquem o remédio prescrito que irá aliviar o mal causado pela “doença”. A Psiquiatria, ao transformar o fenômeno psíquico em doença, livra o sujeito, a família e a sociedade onde o “doente” se criou, da necessidade de autoanálise sobre a corresponsabilidade naquilo que está sendo taxado como “doença”. Pergunte a qualquer psiquiatra se ele já “curou” alguém somente com remédio, sem psicoterapia? Não se sabe de nenhum caso até hoje. A Psiquiatria se estabelece no controle alopático dos sintomas e na administração dos efeitos colaterais.

Em contrapartida, a Medicina Psicossomática despatologiza o fenômeno chamado “doença”, busca seu fundo psíquico, estuda o fenômeno placebo. Em sua linha de pesquisa estabelece pontes entre os universos somático e psíquico, que são bem perceptíveis em doenças como a bronquite asmática, mas que se ampliam para todo tipo de doença. Uma boa referência contemporânea dessa área é o livro A Doença como Caminho de

Costumo dizer que a Psiquiatria vai de encontro à Psicologia e a Medicina Psicossomática vai ao encontro da Psicologia.

Atrás de informações sobre os fenômenos psíquicos a Psicologia mergulhou no universo somático. Atrás de informações sobre os fenômenos somáticos a Medicina mergulhou no universo psíquico. O universo psicossomático se estabelece no encontro dessas pesquisas.

A Psicologia Somática é a representante que parte da Psicologia rumo ao universo somático, ao campo da Psicossomática.

Cada área de pesquisa e conhecimento psicológico define diferentes campos de associação de idéias, teorias e desenvolvimento de metodologias terapêuticas dentro da Psicologia. Afirmar que toda psicologia é psicossomática é afirmar algo que tem certa coerência, mas está longe de ser exato.

Pode-se dizer que a Psicanálise, por exemplo, é psicossomática? De certa forma sim, porque seus efeitos também mexem com o corpo. Por outro lado, buscando facilitar a livre associação das idéias, o discurso solto, sem censura, o método psicanalítico usa a técnica de aquietar o corpo. Pode se chamar de somática uma psicoterapia que deita o corpo num divã?

Outro exemplo: Pode-se dizer que o Behaviorismo é psicossomático? – Sim, sem dúvida. Soma é Corpo no sentido mais amplo da palavra, não só o corpo físico, anatômico, fisiológico (músculos, ossos, sangue, órgãos) como as extensões físicas desse corpo decorrentes de seu trabalho, sua obra, suas ações transformando o mundo. Então, o comportamento (behavior) de uma pessoa é parte do seu Soma o que torna o Behaviorismo de certa forma somático.

No entanto, o método behaviorista consiste em anotar comportamentos no papel, classificar, numerar, levantar gráficos, estatísticas e probabilidades de ocorrência, associá-los às contingências ambientais, estímulos, reforços positivos, negativos, etc. Ele grava, filme, anota, recolhe de alguma forma dados sobre o comportamento para tê-los como informação a ser analisada depois, longe dos corpos. Ou seja, em suas técnicas de pesquisa e intervenção terapêutica, o Behaviorismo não toca no corpo. Pode uma área da Psicologia que não toca o corpo ser chamada de somática?

Costumo dizer que o Behaviorismo estuda o comportamento fora do corpo – ou ainda: de fora para dentro. Isso é possível, já que o comportamento é o que acontece, existe, se externaliza, ou seja, o comportamento é expresso, por isso pode ser analisado externamente. A diferença, então, entre Behaviorismo e Psicossomática fica clara, pois essa última estuda o comportamento a partir do Corpo. Não só do que ele expressa, mas também do que ele contém. Contenções musculares crônicas decorrentes da constante contenção do comportamento espontâneo. O desejo ou a necessidade que não se expressa em comportamento, mas movimenta fluxos bioenergéticos internos que precisam ser contidos – como o medo ou a raiva contida, o “sapo engolido” e coisas assim. Essa contenção consome energia, há trabalho interno, apesar de um normal comportamento externo. Tudo isso interessa muito à Psicossomática, ou seja, a Psicossomática estuda o comportamento a partir do corpo.

Poderíamos discorrer muito ainda sobre o quanto as diversas áreas da Psicologia são mais ou menos somáticas. Mas isso não é necessário. A Psicologia Somática por excelência já está distinta há quase um século. Teve sua origem com a vida e obra do médico psicanalista Wilhelm Reich, discípulo dissidente de Freud, que criou teorias e técnicas psicossomáticas com impressionante determinação e rigor científico. Hoje, estamos na terceira geração de terapeutas, médicos e psicólogos que a partir de Reich desenvolveram novas técnicas e teorias ou aprimoraram as por ele deixadas. São chamados pós e neo-reichianos. Esse universo de teorias e técnicas é conhecido usualmente pelos termos Psicologia Corporal, Psicologia Somática ou Psicossomática.

Supor toda psicologia como psicossomática talvez seja a justificativa encontrada para que quase nenhum curso de Psicologia tenha a Psicologia Somática em seus currículos.

Para mim, o motivo maior dessa situação é que o CORPO está fora da psicologia acadêmica. Para entender o que digo basta perceber uma típica aula de psicologia – alunos sentados, corpos parados, troca de conhecimento intelectual: palavras, imagens. O corpo do aluno não aprende o que se ensina em aula. O aluno não aprende com o corpo. O bom aluno é aquele que fica em seu lugar durante a aula, mantém seu corpo parado de modo que olhos e ouvidos possam telerreceptar o que o professor comunica. O comportamento recriminado pelos professores em geral se refere a conversas paralelas entre alunos, entra e sai da sala, etc., ou seja, atrapalham a aula aqueles que tiram o corpo de seu estado parado, direcionado à frente. Não é à toa que em determinado momento da aula os pés começam a involuntariamente bater no chão, chacoalhar e uma série de outros tipos de manifestações corporais de ansiedade e necessidade de descarga de energia acumulada por falta de envolvimento do corpo com o que está acontecendo em aula por horas seguidas. A experiência de troca de conhecimento que ocorre em uma sala de aula acontece com os corpos à distância.

No fim do curso essa equação se inverte com o chamado “estágio” onde a experiência é vivencial, corporal, somática, mas acontece fora da sala de aula.

O motivo da Psicologia Somática estar fora das Universidades é que ela não se aprende somente lendo textos, ouvindo explanações teóricas, assistindo vídeos, olhando fotos e tudo mais que a Academia utiliza para passar conhecimento no curso de Psicologia. Caso a Psicologia Somática entre para a Academia não há mais como manter o corpo do aluno à distância do “conteúdo” da aula nem dos outros corpos presentes na sala. Isso mexe com todo tipo de preconceito existente em nossa sociedade com relação ao corpo, o que inclui a repressão sexual, a ditadura estética do bonito e feio, a proibição da nudez, a retenção de uma série de manifestações orgânicas naturais: espreguiçar, bocejar, rir, chorar, gritar, gemer, tremer e muitas outras que não são exatamente proibidas, mas se espera que sejam autopoliciadas enquanto o aluno estiver em sala de aula, assim como em todo lugar público: quando não houver como evitá-las, sejam liberadas de forma contida – um bocejo com a mão na frente da boca, um choro contido e disfarçado, assim como espreguiçar, riso deve se restringir a sorriso e não pode virar gargalhada, raiva deve ser rapidamente contida. Quando a manifestação somática não pode ser contida é esperado que o aluno saia da sala de aula e se dirija ao banheiro (como fazemos com as outras manifestações orgânicas que devem ser contidas e liberadas em local reservado) ou vá para sua casa ou ainda, se a coisa fugir do controle e não puder ser contida mesmo depois de terem ocorrido várias ondas de descarga, a pessoa deve ser encaminhada para um hospital a fim de ser medicada, pois há algo que precisa ser normalizado.

As instituições escolares dão o mesmo tratamento ao Corpo que as instituições empresariais e militares. O corpo dos alunos/empregados/ soldados deve permanecer mantendo ações e posturas no tempo e lugar determinados pelos professores/patrões/generais. Percebam que todos os três têm instrumentos de controle e punição para fazer cumprir suas diretrizes. Vigiar e punir. A docilização dos corpos apontada por Foulcalt.

O único espaço oficial que existe para expressão corporal na Academia e nas Escolas em geral é o mesmo de séculos atrás, ou seja: os esportes. Nada contra. Pelo contrário. Só que todo esporte envolve competição e performance.

A partir disso pergunto: e a fragilidade, delicadeza, sensualidade, humor e muitas outras expressões do corpo que não tem forma de comparação?

Uma autêntica disciplina de Psicossomática, ministrada nos cursos superiores de Psicologia e Medicina, começaria por repensar o próprio termo “disciplina” e terminaria por questionar a instituição de ensino como um todo no que diz respeito à sua relação com o corpo de seus alunos.

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